quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Basta tocar para ensinar música?


Sem que pensemos nas respostas às questões abordadas por Maura Penna na Revista da ABEM nº 17, em seu texto "Não basta tocar? Discutindo a formação do educador musical", não poderemos ter uma educação musical realmente significativa no ambiente escolar:
"Quem toca – tendo se formado pelo modelo tradicional de ensino – provavelmente vai ensinar como foi ensinado, o que pode funcionar bem em uma escola especializada, mas não em uma sala de aula da educação básica, com seus desafios próprios:
• Como lidar com condições de trabalho tão diversas daquelas da escola de música, com seu piano, quadro pautado e poucos alunos
por turma?
• Como lidar com diferentes vivências musicais e, por conseguinte, com as distintas músicas que os alunos podem levar para a
sala de aula?
• Como lidar com as diferentes expectativas com relação à aula de música?
Esses desafios exigem novas reflexões e uma outra formação, com base em uma concepção de música bastante ampla para ultrapassar a histórica dicotomia entre música popular e música erudita" (p. 51-52)

Penna propõe que um educador musical deve conhecer, além da linguagem musical, os saberes da função educativa. Comenta isto da seguinte forma:
"Se não basta tocar, uma licenciatura deve ser muito mais, formando um profissional capaz de assumir – e responder produtivamente ao:
• Compromisso social, humano e cultural de atuar em diferentes contextos educativos.
• Compromisso de constantemente buscar compreender as necessidades e potenciali-
dades de seu aluno.
• Compromisso de acolher diferentes músicas, distintas culturas e as múltiplas funções que a música pode ter na vida social.
Para tanto, a formação do professor não se esgota apenas no domínio da linguagem musical, sendo indispensável uma perspectiva pedagógica que o prepare para compreender a especificidade de cada contexto educativo e lhe dê recursos para a sua atuação docente e para a construção de alternativas metodológicas." (p.53)

Multiculturalismo e multiculturalidade, refletindo sobre estes termos


O excerto do dia vem do texto de meu colega Luis Fernando Lazzarin (Revista da ABEM nº19, Artigo: Multiculturalismo e
multiculturalidade: recorrências discursivas na educação musical).
Segundo o autor, de nada adianta falar de multicuralism...o e pluralidade cultural sem realmente compreender estes termos!

"As fronteiras discursivas entre arte da rua, arte de museu, cultura popular, cultura erudita, cultura de massa existem, mas seus limites são, como os de outros territórios pertencentes à cultura, flexíveis e transitórios. Ou seja, o que pertence a um território ou a outro é demarcado pela fluidez da linguagem. Elas estão no jogo permanente de interesses que se estabelece entre os diversos discursos que nos atravessam. Ao insistir em reiterar essa divisão, a educação musical contradiz discursivamente seu compromisso de valorização de todas as manifestações, sejam elas populares ou eruditas. Não estou dizendo que não existam limites entre o popular e o erudito. Eles existem, mas devem ser subsumidos como muito móveis e flexíveis. Por isso, a recorrência discursiva da valorização de todas as práticas musicais converte-se em mais um travestismo lingüístico que precisa ser problematizado. A educação musical deve ficar atenta a esse cenário em que a produção e a recepção da arte contemporânea possuem a fluidez e a transitoriedade da cultura. Nossa experiência com as imagens e com a música desfaz os limites anteriormente definidos dos territórios do erudito e do popular, da produção de massa e da cultura refinada, da arte da rua e da arte de museu, em um constante trânsito negociado, produzido na linguagem, das identidades culturais" (p. 123)Ver mais

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Fortalecimento de identidade através da música



A Revista de nº 18 da ABEM - Número especial de outubro de 2007 - está repleta de bons artigos. Alguns excertos, já trouxe para o blog, mas este será mais comprido, pois o artigo de Beatriz Ilari intitulado "Música, identidade e relações humanas em um país mestiço: implicações para a educação musical na América latina" traz excelentes depoimentos e análises sobre as funções psicológicas da música na vida humana.

Para começar, quero expor parte de seus protocolos recolhidos no Maranhão com um grupo de jovens que tocam o tambor de crioula, enquanto moças aprendem a dançar a Umbigada. Vamos ao relato de Ilari (p. 38)



"Enquanto os outros rapazes afinam os tambores, Ari, Paulo e Denis sentam-se em dois engradados de refrigerante vazios e falam sobre suas dificuldades e esperanças. Os três me explicam que é no pequeno quintal da casa de Paulo que eles reúnem os tocadores (rapazes) e as dançarinas (moças), algumas vezes na semana. Lá, os
rapazes aprendem a tocar os ritmos intricados do crivador, do meião e do tambor grande que compõem a música do tambor de crioula, enquanto as meninas dançam e se divertem com a umbigada. É nesse contexto que o grupo todo também discute questões relativas à origem da dança, e à consciência negra. Denis, que até então ouvia calado, entra na conversa e fala da importância que tem um grupo de tambor de crioula, formado só por crianças e jovens no Maranhão:
– Essa é a nossa música. Se os jovens (nós) não aprendermos, daqui a pouco ninguém se lembra mais como é. E essa música é nossa, dos negros maranhenses. Você sabia que o tambor de crioula é uma das danças mais antigas do Brasil?
Denis se anima e prossegue me contando as origens do tambor de crioula e de suas relações com a música da atualidade; ele fala sobre a escravidão no Brasil, sobre a discriminação dos negros e sobre a importância da cultura afro-brasileira para o país e para o mundo. Ele também fala do sonho de tocar com o grupo de tambor de crioula no Rio de Janeiro, na cidade maravilhosa. A seguir, num gesto típico de menino, ele interrompe a conversa e me convida para ver os colegas que estão dançando Zeca Pagodinho na sala da casa de Paulo. Ao entrarmos na sala, ele me diz: – O Zeca Pagodinho é do Rio de Janeiro, mas ele também é nosso, né?"




Ilari comenta esses fatos relacionando a música a uma espécie de instrumento de negociação e fortalecimento de identidades. Vejamos.

"No grupo de tambor de crioula de São Benedito, os jovens apropriam-se da cultura e a partir dela adquirem conhecimentos e desenvolvem diversas competências de ordem musica (Gardner, 1983)como tocar em conjunto, cantar, improvisar e dançar. Através de ensaios, de discussões de questões referentes à consciência negra e do conhecimento
das origens históricas e culturais do tambor de crioula, os jovens reforçam a auto-estima exercitando aquilo que Merriam (1964) denominou “função de representação simbólica da música”. Além disso, as experiências no tambor de crioula dão aos jovens – tocadores e dançarinas – oportunidades para construir (e/ou reconstruir), expressar e negociar suas identidades pessoal, cultural e nacional". (p. 38-39)

A autora aponta para as seguintes funções da música nos diversos espaços pesquisados: regulação do humor e dos afetos; fortalecimento de vínculos interpessoais (algo que já apontei amplamente em minha própria tese); apropriação cultural e empoderamento.

Quanto a esta última função, vale a pena ler o que a autora analisa:
" [...] em todas as narrativas ficou evidente que as crianças e jovens se apropriaram, não apenas do repertório que aprendiam, mas também da cultura da qual esses repertórios fazem parte. Como disse Green (1997),a música não é neutra. A apropriação cultural dota as crianças e jovens de poder; poder este que lhes permite sonhar com possibilidades futuras". (p. 41)

Enfim, mesmo que a música não deva ter apenas um caráter utilitário e, portanto, uma função, mesmo que saibamos que ela deve ser sobretudo expressão artística e cultural, não se deve negar as funções da música nas diversas sociedades. Assim, concordo com a autora quando diz que:
"Enquanto não formos capazes de reconhecer o valor das inúmeras práticas musicais originadas pela mistura cultural de nosso continente, continuaremos a viver em países onde a cultura permanece “um brinquedo dos ricos” (Levi-Strauss, 1955, p. 97); as demais práticas, não-oficiais, permanecerão invisíveis (Dimenstein, 2005).".(p. 42)

Ilari termina seu texto com uma bela citação:
"Nós, latino-americanos, precisamos urgentemente reconhecer que há múltiplas concepções de educação musical na América Latina que são igualmente importantes. Somente através da minimização das hierarquias existentes na área da educação musical e do reconhecimento da música como competência humana que assume inúmeras funções da música na vida dos indivíduos, é que teremos uma educação musical forte e libertária em nosso continente".(p. 43)

Bem, compartilhar com vocês, durante estes últimos dias, os excertos de minhas leituras é uma forma interessante de estudar, e de certa forma, fichar as coisas que leio, pois postando estas passagens por aqui, não me esquecerei daquilo que será mais importante para as análises de minha pesquisa. Está passando por este blog um desfile de respeitados e renomados autores (meus colegas pesquisadores da área de educação musical do Brasil) que poderão servir de referência para aqueles que pretendem refletir, assim como nós, sobre essa área.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Diversidade e inclusão



Excerto de Marisa Fonterrada sobre o fazer musical, escrito no artigo "Diálogo Interáreas: o papel da educação musical na atualidade":
"No nosso entender, a grande função da música na atualidade é abrir espaço para que os indivíduos e comunidades possam desfrutar do fazer musical e da apreciação legítima e profunda da música e se utilizem dela como fonte de desenvolvimento e crescimento. Sem qualquer forma de exclusão" - Marisa Fonterrada - Revista da ABEM nº 18, edição especial, outubro de 2007.

Excerto de Maura Penna escrito no texto "Desafios para a educação musical: ultrapassar oposições e promover o diálogo":
"A homogeneidade e a padronização podem ser mais confortáveis e protetoras, mais fáceis de lidar; mas a diversidade é muito mais rica. Que sejamos capazes não apenas de acolhê-la, mas de estimulá-la" - Maura Penna - Revista da ABEM nº 14 de março de 2006

domingo, 15 de janeiro de 2012

A musicalidade da América Latina


Compartilho aqui mais excertos de minhas leituras de hoje. É proveniente da Revista da ABEM nº 18 (p. 17). O artigo é da professora Jusamara Souza. O texto "Cultura e Diversidade na América Latina" nos faz refletir sobre o quanto somos preconceituosos a respeito do conceito que temos sobre música brasileira. A autora diz:

"Embora o Brasil também tenha a diversidade como elemento fundante em suas culturas, o nacionalismo das décadas de 1930 e 1940 procurou construir uma identidade unificadora na qual pouco se percebia as diferenças dos elementos constituintes da nação. Isso pode explicar a cristalização de duas visões que hoje fazem parte do imaginário sobre o Brasil e por consequência da música brasileira. Por um lado o mito da convivência racial pacífica entre brancos, negros e ameríndios, uma suposta 'democracia racial', baseada na percepção da miscigenação como processo harmônico que hoje tem sido questionado por vários teóricos. Por outro, a visão de uma intensa musicalidade de seu povo e do Brasil como um 'país do som', um 'lugar onde mais se faz música no mundo'".

Ora, ambos os estereótipos geram preconceitos! O segundo remete ao talento inato, algo que combatemos ferrenhamente em nossos escritos construtivistas! E o primeiro, como diz a própria autora é um mito!

Souza diz que "Pensar sobre música brasileira hoje significa analisar as trocas culturais que hoje atravessam o país e fazem com que os limites entre litoral/sertão ou morro/asfalto se dissolvam". Ela propõe também que a música brasileira, em função disto, distanciou-se definitivamente das oposições entre música popular e a dita "música culta" ou erudita! Graças a Deus!!!!!

Instrumentos Alternativos - CBM - janeiro 2012

"A música, em sua história, é uma longa conversa entre som (enquanto recorrência periódica, produção de constância) e o ruído (enquanto perturbação relativa da estabilidade, superposição de pulsos complexos, irracionais, defasados). Som e ruído não se opõem absolutamente na natureza: trata-se de um continuum, uma passagem gradativa que as culturas irão administrar, definindo no interior de cada uma qual a margem de separação entre as duas (a música contemporânea é talvez aquela em que se tornou mais frágil e indecidível o limiar desta distinção)" - José Miguel Wisnik, em "O som e o sentido", p. 30.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Rose Hikiji: A música e o risco - Importantes reflexões sobre a música como intervenção social

Durante este mês, estou realizando leituras para analisar minha pesquisa sobre a musicalização que acontece nos projetos sociais do Vale do Paranhana. Deparei-me com esta linda obra de Rose Hikiji, a qual estou lendo com muita atenção, pois será importante referencial teórico de meu próprio estudo atual: "A Música e o Risco", obra publicada em 2006 pela editora Edusp.

A obra foi escrita baseada na tese de Doutorado da autora que procurou observar a musicalização dos internos na Febem e do Projeto Guri, em seus vários pólos, originados pela iniciativa paulista da Secretaria de Educação e Cultura de ensino da música por meio de orquestras didáticas e corais para público prioritariamente de baixa renda. Hikijo procura compreender qual a especificidade do aprendizado musical nestes espaços. Procura também saber porque e como a música seduz e envolve seus praticantes e que experiências o fazer musical possibilita aos sujeitos "ditos" carentes.

O estudo oferece amplas pistas sobre a importância e o destaque dado à musicalização nos projetos sociais que trabalham com menores de idade.

Gostaria de compartilhar aqui excertos que me tocaram profundamente ao realizar minha leitura de hoje.

Este primeiro, parece-me uma análise bastante foucaultiana da autora, mesmo que inconsciente, e muito pertinente. Ela está se referindo à prática musical da Febem:
"A prática musical - e sua corporalidade - confronta-se diretamente com o controle corporal imposto pela instituição. Como apontarei a seguir, há distinções óbvias como o cuidado com o corpo - manifesto na massagem antes do canto, no alongamento antes da prática instrumental - e a agressão ao mesmo, comum na rotina institucional (nos espancamentos, ameaças, restrições de liberdade e no controle das necessidades fisiológicas). Há também dimensões mais sutis, mas não menos poderosas: ser tocado pela professora que ensina uma determinada postura com suas próprias mãos (e não aos gritos de comando: "cabeça baixa, mãos para trás"); ouvir ao maestro o pedido de cantar mais "suave" - e buscar em sua memória a sensação de suavidade; ser perfumado antes de subir ao palco para uma apresentação..." (p. 123-124)

Chocantes as observações de Hikiji e bem verdadeiras. São estes constrastes que fazem com que o menor tenha desejos contraditórios, conforme também aborda a autora em sua obra:
"[...] presenciei jovens 'despertados'pelo fazer musical, jovens que percebiam suas potencialidades e as limitações decorrentes de sua situação, seja de preso, seja de pobre. Jovens que percebiam o prazer decorrente da produção de sons, de música, mas sabiam que dificilmente teriam acesso a esse prazer do outro lado dos muros. E o aluno que fala para o professor 'quando sair daqui quero roubar um contrabaixo' é a expressão da explosão da dicotomia, um retrato da contradição" (p. 145-146)

Hikiji, sobre música e desejo traça a seguinte reflexão:
"A música desperta desejos. Isto é fundamental para superar situações de baixa auto-estima, como a estimulada pelo ambiente das instituições totais (refere-se a prisões, conventos, manicômios), ou mesmo em situações de carência material ou emocional. O educador Cesare de La Rocca, criador do projeto Axé, vê a possibilidade de recuperação da auto-estima justamente por meio de uma 'pedagogia do desejo', que trabalhe o indivíduo para que ele tenha o desejo de ter desejos." (p. 145)

Bem, essas e outras tantas citações do livro fazem-me refletir profundamente sobre os cenários e entrevistas que realizei nos projetos do Vale do Paranhana. Fazem-me também pensar na falência do sistema punitivo do país e também nas reflexões que realizamos, justamente sobre a gênese do desenvolvimento moral na criança que vai de encontro a posturas puramente heterônomas, necessitando-se de espaços de autonomia e cooperação para que a criança realmente desenvolva sua subjetividade, e também suas relações sociais saudáveis. Estes excertos de Hikiji vão ao encontro do que pensei em minha própria tese de doutorado, quando abordei os espaços cooperativos de construção coletiva musical, como espaços que garantem não somente a construção do conhecimento musical, mas também o desenvolvimento subjetivo, simbólico, lógico e social saudável dos sujeitos que se musicalizam em grupo.